terça-feira, 31 de março de 2015

A RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA E A LITURGIA DA SANTA MISSA - Parte II





Extratos do Livro "A Renovação Carismática Católica e a Liturgia da Santa Missa" a ser publicado em breve

A Natureza do Movimento Carismático 

Católico



“Renovação Carismática Católica, graça de Pentecostes!”
Cardeal Suenens, encontro de líderes em Roma, 1989.

“A Renovação Carismática não é somente uma moda. Seus frutos são, de imediato, perceptíveis: Trata-se de uma forte ação espiritual que muda vidas. Não é somente um “avivamento”, mas uma verdadeira renovação, um rejuvenescimento, um frescor, uma atualização de novas possibilidades que surgem da Igreja, sempre antiga e sempre nova” (Congar, Espíritu Santo, 2, 158).

A Renovação Carismática é Católica

Existem algumas características básicas que diferenciam o Pentecostalismo Católico daquele que se deu, historicamente, entre os nossos irmãos separados. Destacarei aqui a preocupação que os líderes da Renovação sempre tiveram por buscar raízes na tradição da Igreja para fundamentar e legitimar a experiência do Espírito tal qual ela se dá na Renovação Carismática Católica.

Em seu livro Renovación en el Espíritu Santo a teóloga espanhola Denise S. Brakebrough dedica todo o primeiro apartado a falar dos antecedentes históricos da Renovação Carismática Católica¹. Três professores da Universidade de Duquesne e do Espírito Santo em Pittsburgh, Pensilvânia, foram as primeiras sementes daquele que foi o marco inicial (e não a fundação) da Renovação Carismática Católica tal como a conhecemos hoje. São eles: William G. Storey, Ralph Keifer e Patrick L. Bourgeois.

Finalizando o Concílio Vaticano II e impactados por seus ensinamentos, três professores leigos de Filosofia e Teologia, membros da Universidade de Duquesne e do Espírito Santo, William G. Storey, Ralph Keifer e Patrick L. Bourgeois, que desde o outono de 1966 se reuniam com frequência em grupos de oração, pensaram em “fazer algo”. Há necessidade de mencionar-se que, durante a década dos anos sessenta, havia se produzido nos Estados Unidos uma onda de entusiasmo pelas vigílias bíblicas e os encontros de oração. Este era o ambiente que reinava [...] Fomentava-se a atividade litúrgica, o testemunho cristão e a ação social.

... Ditos professores começaram a pedir, em oração, que o Espírito Santo lhes concedesse essa renovação e que o vazio que sentiam [causado pelas práxis pelagiana e voluntarista impregnadas em muitos aspectos da espiritualidade católica] fosse preenchido pelo Senhor ressuscitado. Para isso, começaram a rezar o “Vem, Espírito Santo” da sequência que se recita na liturgia do domingo de Pentecostes. Ao mesmo tempo, esmeraram-se no estudo do Novo Testamento, especialmente as partes que detalhavam a vida da Igreja primitiva dos primeiros séculos.

William G. Storey era professor de Teologia e sua especialização era justamente a Liturgia. Segundo Storey, seu entusiasmo pela experiência que hoje se denomina Renovação era alimentado por seus estudos no que tange às origens e desenvolvimento das liturgias orientais e ocidentais e sua triste constatação de que havia um declínio acontecendo com a nossa forma de transmitir ao homem hodierno os mistérios celebrados, bem como uma desesperada necessidade de revitalização. As reformas propostas pelo Concílio Vaticano II foram motivo de enorme entusiasmo. William via que as diversas tradições cristãs deveriam oferecer seus tesouros espirituais mutuamente (também o Frei Raniero Cantalamessa comenta o tema falando da capacidade de Deus de tirar algo grandioso daquilo que foi um mal – a nossa divisão – uma vez que cada tradição desenvolveu algum aspecto da vida cristã com maior ênfase; a nossa unidade trará grande benefício a Igreja).

O fato de a Renovação Carismática Católica ter nascido com influências notadamente “pentecostais evangélicas” não impediu que a mesma buscasse, desde seus inícios, os braços amorosos da Igreja, Mãe e Mestra, clamando por um profundo enraizamento na tradição. E de fato estes braços a acolheram desde o seu nascimento. De Paulo VI a Francisco, a Renovação vem sendo confirmada no seu caminhar eclesial (O ICCRS produziu uma coletânea intitulada Então Pedro Levantou-se, que traz os pronunciamentos dos últimos Papas até Bento XVI – em seguida surgirão novas edições, incluindo os pronunciamentos de Francisco). Além dos próprios Papas, a Renovação sempre foi cercada por sacerdotes, bispos e cardeais – faço uma menção especial e honrosa ao Cardeal Leo Joseph Suenens – que tiveram todo um cuidado pastoral para acolher a novidade gerada pelo Espírito, fazendo-a coadunar com a tradição bimilenar da Igreja.

O livro da Dra. Denise Brakebrough traz uma coletânea dos pronunciamentos das mais diversas conferências episcopais ao redor do mundo sobre a Renovação Carismática Católica. Em todos, percebemos o espírito de acolhida e orientações pastorais necessárias para que aquilo que vem de Deus seja salvaguardado.

Neste esforço pastoral, dê-se especial menção ao Documento organizado pelo Cardeal Suenens conhecido como Documentos de Malines, publicado em diversos países sob o título de Orientações Teológicas e Pastorais para a Renovação Carismática Católica. Participaram da elaboração destas orientações os teólogos Carlos Aldunate, SJ, Salvador Carrillo, M.SP.S, Ralph Martin, Albert de Monleon, OP, Killian McDonnell, OSB, Heribert Mühlen, Veronica O’Brien e Kevin Ranaghan. Como teólogos consultantes, participaram da obra Yves Congar, OP, Avery Dulles, SJ, Michael Hurley, SJ, Walter Kasper, René Laurentin e Joseph Ratzinger.

Esta Renovação é e sempre quis ser plenamente Católica. Surgiu no ambiente do Concílio Vaticano II, respirando os seus anseios, e foi acolhida como uma oportunidade para a Igreja (Palavras do Papa Paulo VI em 1975). Ela não é Católica apesar de suas origens e chamado ecumênicos, mas justamente por causa deles.

A Renovação Carismática Católica, a Economia Sacramental e a Liturgia

Os primeiros líderes da Renovação entendiam que a experiência do Batismo no Espírito Santo – que originou as reuniões de oração carismáticas – gerava uma verdadeira corrente de graças para a vida de toda a Igreja. Naquele então, buscava-se contrapor a noção de corrente de graça à noção de Movimento, com o temor de que a segunda particularizasse ou limitasse o Batismo no Espírito Santo a apenas um grupo de pessoas. Era neste contexto que frases como “A Renovação não é um Movimento da Igreja, mas a Igreja em Movimento” ganhavam voz e vez. Livros como Pentecostes Hoje? do Cardeal Suenens e Movimento Pentecostal Católico, de Edward O’Connor, evidenciavam isto tão claramente que ninguém, com honestidade intelectual, o poderia negar.

Nesta visão de olhar para o Batismo no Espírito Santo como uma graça para a vida de toda a Igreja, os Padres Killian McDonnell e George Montaigne escreveram uma pequena obra publicada no Brasil com o título de Avivar a Chama².  Este livreto foi apresentado pela Comissão de Serviço da RCC dos EUA à Conferência de Bispos Americanos.

Assim escreveu o Bispo da Diocese de Alexandria, em Louisiania, Dom Sam J. Jacobs – quem pessoalmente experimentara aquilo que chamamos de Batismo no Espírito Santo – na carta de apresentação do livro Avivar a Chama (ênfases colocadas por mim):

Este documento e muitos outros estudos deixam claro que a graça de Pentecostes, conhecida como Batismo no Espírito Santo, não pertence a nenhum movimento particular, mas a toda a Igreja. De fato, não é nada realmente novo, fazendo parte dos desígnios de Deus para Seu povo, desde aquele primeiro Pentecostes em Jerusalém e através de toda a história da Igreja.

Na verdade, na vida e na prática da Igreja, de acordo com os escritos dos Padres da Igreja, esta graça de Pentecostes é considerada normativa para um modo de viver cristão e essencial para a plenitude da iniciação cristã.

Ao divulgar este documento, a Comissão de Serviços Nacionais da Renovação Carismática dos EUA almeja dar início a novas reflexões teológicas sobre a questão da graça de Pentecostes, a fim de que as pessoas tenham mais consciência do plano de Deus para todo o Seu povo, e incentivar o aperfeiçoamento de modelos pastorais sensatos visando à implementação da premissa fundamental deste documento, isto é, que ser plenamente batizado no Espírito Santo faz parte da vida litúrgica comum da Igreja³.

Vamos repetir esta frase mais uma vez:

... a premissa fundamental deste documento, isto é, que ser plenamente batizado no Espírito Santo faz parte da vida litúrgica comum da Igreja.

Logo no início do livro, os autores escrevem:

“Recebestes o Espírito Santo quando abraçastes a fé?” (At 19,2). A essa pergunta de São Paulo, nós, como católicos, respondemos um sincero “sim”, pois nos sacramentos de iniciação recebemos verdadeiramente o Espírito Santo. Contudo, somos convidados a avivar a chama, a reanimar “o dom de Deus” (2Tm 1,6) por meio de uma conversão cada vez mais sincera a Jesus Cristo.

Estamos escrevendo aos bispos e líderes pastorais da Igreja Católica para compartilhar nossa convicção de que o “Batismo no Espírito Santo”, assim chamado pelos escritores cristãos primitivos, é a chave para levarmos uma vida cristã plena. Neste documento, o “Batismo no Espírito Santo” se refere à iniciação cristã e a seu novo despertar na prática cristã. A Igreja primitiva utiliza o Batismo no Espírito Santo para a iniciação cristã. O emprego desta frase hoje em relação ao despertar mais tardio da graça sacramental original não significa, de modo algum, um segundo Batismo. Não estamos sugerindo que o “Batismo no Espírito Santo” acontece apenas na Renovação Carismática, pois a experiência pastoral e a reflexão teológica nos levam a crer que a graça do “Batismo no Espírito Santo” destina-se a toda a Igreja.

*O emprego generalizado de “Batismo no Espírito Santo” por pentecostais e “evangélicos ortodoxos” leva alguns católicos a desconfiarem que a frase está ligada ao fundamentalismo. Porém, como ela se encontra nas Escrituras e em autores destacados dos primeiros séculos e é usada em quase todas as igrejas, católicas e protestantes igualmente, onde existe Renovação Carismática, o presente documento opta por mantê-la.

O Batismo no Espírito Santo não se prende a nenhum movimento, quer liberal, quer conservador. Também não se identifica com um único movimento nem com um único estilo de oração, culto ou comunidade. Ao contrário, acreditamos que este dom faz parte da herança cristã de todos os que receberam os sacramentos da Igreja4.

Estas afirmações deixam cada vez mais claro que:

·         A experiência do Batismo no Espírito Santo existe para avivar a chama do Espírito no coração de todos os católicos que se abrirem para tal.
·         O Batismo no Espírito Santo, na sua dimensão comunitária, existe para avivar o modus orandi do Cristo, o que se orienta profundamente para a participação litúrgica e sacramental do povo de Deus, quando falamos de Igreja Católica.

Os grandes líderes carismáticos das primeiras três décadas não mediram esforços para entender esta Renovação como dom para toda a Igreja, refletindo sobre ela desde o prisma dos sacramentos e da liturgia, que são as verdadeiras colunas de sustentação da espiritualidade católica. Recordo-me da série de livros do Pe. Robert DeGrandis, SJ – para citar um exemplo – e de seu afã em “ligar” a experiência carismática com a recepção dos sacramentos (especialmente a Eucaristia e a Penitência).

Avivar a Chama afirmará ainda – baseado no testemunho patrístico – que o Batismo no Espírito Santo e os Carismas eram, na Igreja Primitiva, uma experiência ligada à iniciação cristã e a liturgia oficial da vida pública da Igreja:

O Batismo no Espírito Santo era sinônimo de iniciação cristã em Justino Mártir (Diálogo com Trifão 29, 1; Patrologia Graeca [PG] 6, 537), Orígenes (Sobre Jeremias 2, 3; Sources Chrétiennes [SC] 232, 244) Dídimo, o Cego (Sobre a Trindade 2, 12; PG 39, 669, 673), e Cirilo de Jerusalém (Palestras Catequéticas 16,6; Cyrilii hierosolymarum archiepiscopi opera quae supersunt omnia [CAO], 2, 213). Tertuliano, Hilário de Poitiers, Cirilo de Jerusalém, João Crisóstomo, João de Apaméia, Filoxeno de Mabugo, Severo de Antioquia e José Hazaia claramente consideravam o recebimento de carismas integrante da iniciação cristã. Hilário, Cirilo e João Crisóstomo receberam o título de doutores da Igreja, sendo reconhecidos como testemunhas competentes para identificar a fé da Igreja. Seu testemunho demonstra que o Batismo no Espírito Santo não é uma questão de devoção particular, mas da liturgia oficial e da vida pública da Igreja. Historicamente, o Batismo no Espírito Santo integra os sacramentos de iniciação, essenciais à Igreja, a saber: Batismo, Confirmação e Eucaristia. Neste sentido, o Batismo no Espírito Santo é normativo5.

Depois de “rechearem” as argumentações com citações patrísticas, Killian McDonnell e George Montaigne afirmam:

À luz das reflexões anteriores e de nossa experiência do batismo no Espírito e dos carismas desde o Vaticano II, cremos que a retomada do batismo no Espírito Santo pela Igreja promete revitalizar a evangelização, as prédicas, o culto sacramental, o Rito de Iniciação Cristã de adultos, a pastoral da juventude, a preparação para o crisma e modos de vida comunitária no contexto da paróquia local. Fazemos estas sugestões específicas, percebendo que elas não esgotam as preocupações pastorais da Igreja6.

De fato, a Comissão de Serviços da Renovação Carismática Católica dos Estados Unidos quer deixar claro aos seus Bispos que a Renovação deseja penetrar na vida das paróquias como uma corrente de graça. Fala-se, portanto, da Paróquia Renovada, que não significa em absoluto uma Paróquia da Renovação Carismática Católica. Assim afirmam:

Em nossa visão, a paróquia renovada é uma comunidade prestando culto em vibrante liturgia, unida pelo Espírito Santo, servindo uns aos outros, empenhados na conversão e no crescimento contínuos, comunicando-se com os inativos, os irreligiosos e os pobres. Tais paróquias põem-nos em contato com o evangelho e evangelizam nossa cultura. Nessas comunidades, como nos Atos dos Apóstolos e na Igreja primitiva, os carismas do Espírito Santo são identificados e acolhidos com alegria7.

Esta é a mentalidade dos líderes da Renovação Carismática Católica em âmbito internacional nos seus primeiros vinte e poucos anos. Esta é a Renovação Carismática Católica da “primeira hora”: Um povo de louvor e de adoração, com uma espiritualidade profunda. Um Movimento que enfatiza a necessidade da conversão, da santificação pessoal e da vida em Comunidade. Estas características não são a minha opinião pessoal apenas, mas foram constatações feitas pelos Papas e pelos Bispos. Cito textualmente o pronunciamento do Papa Paulo VI no dia 10 de outubro de 19738:

Alegramo-nos convosco, queridos amigos, pela renovação de vida espiritual que hoje em dia se manifesta na Igreja, sob diferentes formas e em diferentes ambientes. Nesta renovação aparecem certas notas comuns: O gosto por uma oração profunda, pessoal e comunitária; Uma volta à contemplação e uma ênfase colocada na palavra de Deus; O desejo de entregar-se totalmente a Cristo; Uma grande disponibilidade às inspirações do Espírito Santo; Uma leitura assídua da Escritura; Uma ampla abnegação fraterna; Uma vontade de prestar uma colaboração aos serviços da Igreja.

O Batismo no Espírito Santo é uma experiência que imprime um novo sentido, um desabrochar do Espírito na alma do fiel. Mas esta é apenas a dimensão subjetiva da experiência, o “eu creio”. Na dimensão objetiva, no “nós cremos”, o Batismo no Espírito Santo toca o nosso Modus Orandi na comunidade cristã, portanto, direciona-se totalmente para a Liturgia da Igreja, para a vivência dos sacramentos e para a administração dos mesmos.

A Discussão sobre “Corrente de Graça” e “Movimento” em face da preocupação pela Liturgia e pela Economia Sacramental

O livro de Reinaldo Beserra dos Reis intitulado Renovação Carismática Católica Um Constante Desafio9 é magistral a este respeito (na minha opinião, é de leitura obrigatória para os “carismáticos”).

A Igreja Católica é constituída das dimensões institucional e carismática. Isto não significa que algumas coisas na Igreja sejam “institucionais” e outras “carismáticas”; pelo contrário: qualquer realidade eclesial é essencialmente institucional e carismática.

Desde o princípio, o mesmo Cardeal que defendera o Movimento Carismático como corrente de graça também se preocupava com dar forma aos Serviços Internacionais da RCC, a fim de dar suporte formativo e pastoral aos diversos grupos de oração existentes no Mundo. Organismos continentais, nacionais, estaduais, diocesanos, etc. foram surgindo em decorrência da necessária unidade pastoral e doutrinária. Sendo assim, a RCC foi tomando os moldes de um Movimento Eclesial.

Ela é, portanto, um Movimento Eclesial. Está ligada ao Conselho Pontifício para os Leigos. Isto dá à Renovação Carismática a possibilidade de ter unidade no pensamento e no agir. Por esta organização, ela foi abençoada de inúmeras formas e acompanhada com solicitude pelos Bispos da Igreja.

Eu acredito, contudo, que os líderes da Renovação unidos num Movimento Eclesial precisam entender que, em primeiríssimo lugar, há algumas peculiaridades que diferenciam a RCC da noção básica de Movimento Eclesial. Pontuo duas:

1.       Um Fundador: A Pessoa do Fundador não é periférica, mas de suma importância na vida de um Movimento Eclesial. Ele é o transmissor do carisma. A Renovação Carismática, por outro lado, não tem um fundador, nem uma data de fundação.
2.      Princípios, Normas e Regras do Movimento: Os Movimentos Eclesiais possuem normas, princípios e regras que regem desde a incorporação ao Movimento (apresentando pré-requisitos para que alguém possa ser aceito no Movimento) à vida diária de seus membros, com um caminho espiritual a ser percorrido, normas de vida a serem observadas, orações específicas a serem feitas, etc. A RCC, por outro lado, não faz seleção de pessoas, não restringe, não impõe normas de incorporação. A RCC não possui princípios e normas próprias. Todo aquele que é Batizado no Espírito Santo, manifesta carismas e está unido ao Bispo Diocesano (vive na comunidade) ... É legitimamente carismático.

Um breve comentário em relação com o segundo ponto citado acima: Tentando incutir no coração das pessoas o benefício da participação nos grupos de oração como lugar privilegiado para a vivência da oração carismática comunitária, houve, aqui no Brasil, todo um trabalho levado a cabo pelo Conselho Nacional que tinha por “rhema” a frase “Grupo de Oração, Eu participo”. Infelizmente, os direcionamentos desta campanha foram mal interpretados por muitos que, até hoje, afirmam categoricamente que aqueles que não participam de um Grupo de Oração ligado ao Movimento da RCC não são carismáticos. Portanto, Novas Comunidades não são Renovação Carismática, por exemplo. Isto vai contra os estatutos do ICCRS aprovados pela Santa Sé e é, portanto, improcedente.

Estas características, contudo, são essenciais para identificar uma realidade eclesial como Movimento? O Espírito Santo tem dito a Igreja que “não”. Embora sem um fundador e um livro de regras, a Renovação se constitui um grupo de homens e mulheres – ministros ordenados e leigos – portadores de uma graça que é, para a Igreja, rosto e memorial de sua dimensão carismática. O carisma específico deste Movimento é a vivência pentecostal com suas manifestações e consequências atestadas no relato bíblico. De fato, nenhum “carisma específico e fundante” de um Movimento é algo totalmente novo; apresenta-se sempre como um despertar ou avivar de uma dimensão da vida cristã que o Espírito Santo deseja ressaltar e trazer à tona num momento específico da Igreja. O movimento franciscano, por exemplo, tem por carisma específico a pobreza evangélica; ora, só os franciscanos devem ser pobres? De modo algum! O movimento franciscano – na sua vivência radical, amorosa e até “louca” (característica própria dos apaixonados) – é rosto e memorial perene deste conselho evangélico. Toda a Igreja deve ser pobre! Outro exemplo: O Movimento dos Focolares tem por carisma fundacional a unidade e – na sua vivência radical, amorosa – é rosto e memorial deste mandato do Senhor: “Que todos sejam um para que o mundo creia” (cf. Jo 17,21). É neste sentido que o Movimento Carismático é legitimamente um “Movimento” enquanto rosto e memorial da vivência pentecostal do cristão – que se orienta a avivar a dimensão carismática da Igreja – na sua vivência radical, amorosa e “louca”.
  
Este é um dos desafios teológicos que o Movimento Carismático apresenta à Igreja: A Renovação assumiu a forma de um Movimento Eclesial e assim foi acolhida pela Igreja sem ter um fundador e manuais com princípios e normas, pois, apesar disto, traz em si um carisma específico de renovação pentecostal para toda a Igreja.

Somos um Movimento. Que isto seja sim um motivo de alegria. Contudo, o fato de não levarmos em conta as especificidades deste movimento e a ênfase que se deu à institucionalização da RCC enquanto Movimento Eclesial gerou também um ônus que desejo fazer objeto da nossa reflexão.

A Renovação Carismática é um Movimento? Bem, o “Caminho Neocatecumenal” também o é, os “Focolares” igualmente; o “Cursilho”, a “Comunhão e Libertação”, o “Opus Dei”, o “Regnum Christi”, etc., são todos Movimentos Eclesiais. Como Movimentos, possuem suas sedes com toda uma vida própria, repleta de atividades e independente, sob muitos aspectos, da Comunidade Paroquial. Em linhas gerais, o impacto que estes Movimentos causam na vida das paróquias é gerado pela participação de seus membros no dia a dia da paróquia (não se trata, portanto, de uma ação específica do Movimento para a paróquia, mas da participação dos membros do Movimento – com uma boa formação e uma vida espiritual geralmente profunda – no dia a dia da paróquia ... Algo que se dá meio que “por osmose”).

Na busca da necessária institucionalização, a Renovação Carismática Católica criou toda uma dinâmica formativa e uma atividade missionária que são próprias de um Movimento e, muitas delas, inegavelmente são independentes da paróquia. Em muitíssimas realidades, o Grupo de Oração é um horário semanal no qual os “carismáticos” usam as dependências da paróquia para as atividades próprias do Movimento sem qualquer relação com o programa pastoral da Diocese e da própria paróquia. Quando muito, participam das reuniões de CPP, “tocam” em alguma das missas e organizam alguns eventos. Ao assumirem funções como catequistas, ministros da Eucaristia e membros das diversas pastorais, eles o fazem desde que não façam qualquer coisa que remeta à experiência carismática, de modo que, se por um lado ganhamos católicos com uma maior “sensibilidade espiritual” para os diversos serviços da paróquia (o que é uma benção), por outro lado a experiência carismática fica relegada a uma atuação paralela da vida mesma da paróquia.

É necessário repensar o conceito de Paróquia e de jurisdição eclesiástica? Com certeza (e esta discussão está muito em voga nas reuniões dos Bispos aqui no Brasil). A Paróquia precisa se abrir para que os Movimentos Eclesiais consigam se inserir devidamente, desembocando no conceito de Paróquia como Comunidade de Comunidades. Aliás, acho incrível como os Movimentos Eclesiais são considerados como “carentes de eclesialidade” por muitos padres e líderes de pastorais, que só passam a considerar alguém como “inserido na vida da paróquia” se a pessoa fizer, ao mesmo tempo, parte de algum serviço ou pastoral. Participar de um Grupo de Oração e trabalhar ativamente nele é “insuficiente” para estes padres e líderes.

 Por outro lado, quando o assunto é Renovação Carismática Católica... Não consigo deixar de lamentar o fato de nós termos abandonado o desejo de “revitalizar a evangelização, as prédicas, o culto sacramental, o Rito de Iniciação Cristã de adultos, a pastoral da juventude, a preparação para o crisma e os modos de vida comunitária no contexto da paróquia local” e o sonho de uma paróquia como uma comunidade prestando culto em vibrante liturgia. Este foi o ônus da ênfase da Renovação Carismática Católica como um Movimento Eclesial, pois infelizmente o Batismo no Espírito Santo e as Manifestações Carismáticas passaram a ser “coisa de carismáticos” e abandonamos, como Movimento, os assuntos do dia a dia de uma Paróquia Católica como não sendo “a nossa identidade”, “a nossa missão”, a final, “a economia sacramental e a liturgia são comuns a toda a Igreja”, “não é da responsabilidade de um movimento em específico”.

A Renovação precisa deixar de ser um Movimento? De modo algum! Aliás, isto é impossível e, se fosse possível, seria um grave erro. Se colocarmos na balança, o bônus de sermos um Movimento é muito maior que o ônus sob vários aspectos (e é por isto que o Espírito Santo nos guiou por este caminho). Sou contra este pensamento romântico de que não podemos ser um Movimento porque somos uma espiritualidade, uma “corrente de graças” como algo “solto no ar”, sem coordenações, estruturas e organismos. Isto não existe na Igreja de Cristo, que sempre foi e sempre será Instituição e Carisma! Por outro lado, eu acredito que a visão dos líderes carismáticos precisa ser reformulada quanto a consciência que temos de nós mesmos, uma vez que, embora sejamos um Movimento Eclesial, somos muito diferentes dos demais movimentos (o que não nos torna melhores ou piores).

Estamos falando, portanto, de um Movimento a sui generis, com um caráter universal muito próprio, orientado a avivar toda e qualquer espiritualidade, serviço, movimento, instituição, congregação, associação ou “ajuntamento de pessoas” que o desejar. Ao mesmo tempo, este próprio “sopro espiritual” se constitui num organismo vivo e pulsante, cuja única missão é manter o avivamento carismático em constante ação, dia após dia, para toda e qualquer pessoa e realidade eclesial que dele quiser beber.

Então, como gerar uma organização sem reduzir a natureza da Renovação a algo que ela não é? Isto, sem dúvida alguma, constitui-se num dos maiores desafios para a existência da Renovação (e uma das coisas mais apaixonantes nela também!).

Algumas ideias me veem a mente sobre esta questão:

·         Para que o Batismo no Espírito Santo, as Manifestações Carismáticas e a vida comunitária no Espírito permaneçam vibrantes e atuantes na vida da Igreja, renovando toda e qualquer pessoa ou realidade eclesial que esteja aberta para tal, o Espírito Santo suscita homens e mulheres que, unidos, são como que um coração bombeando o avivamento para todo o corpo. Os líderes carismáticos unidos são um coração que bombeia a experiência carismática; eles são rosto e memorial (no sentido bíblico de “tornar atual”, “reapresentar”) de Pentecostes, que é perene na vida da Igreja.
·         Estes líderes levantados por Deus estão unidos internacionalmente, bem como nos níveis nacionais, estaduais, diocesanos e paroquiais, e constituem, assim, o Movimento da Renovação Carismática Católico.
·         Os Grupos de Oração são lugares calorosos de oração ao serviço de todos os católicos (e não a reunião dos membros do movimento) independente do serviço que estes prestam à Igreja ou da espiritualidade com a qual se identificam.
·         O verdadeiro responsável pela Renovação Carismática é o coordenador diocesano, pois é ele quem tem o respaldo e atua sob o cajado do Bispo da Igreja Particular, que é o verdadeiro Pastor, em nome de Jesus Cristo, ao qual todos devemos estar ligados (e, por meio dele, ligados à Igreja Universal sob o cajado do Papa).
·         Todos os níveis acima da coordenação diocesana da RCC (estaduais, nacionais e internacionais) são instâncias de serviço, apoio, promoção, formação, orientação, discernimento, etc., menos de governo. Este é, por exemplo, o papel dado pela Santa Sé ao ICCRS, em seus estatutos! É uma instância de comunhão e não de governo. Um coordenador estadual ou nacional (para citar um exemplo) jamais poderia interferir numa instância diocesana sem o consentimento do Bispo Local, pois não gozam de autoridade de governo para tal.
·         O Coordenador Diocesano é aquele que, sob a autoridade do Bispo Diocesano, auxilia os Párocos nas Comunidades a fim de que a graça do Batismo no Espírito Santo permeie todas as realidades e serviços da Paróquia, zelando para que o Grupo de Oração seja coordenado e cuidado por pessoas bem formadas e identificadas com a Renovação: líderes levantados por Deus para serem um coração da experiência carismática na comunidade, como rosto e memorial de pentecostes.
·         O primeiro serviço da Renovação é ... A Renovação da Igreja, constituída em Igrejas particulares e Comunidades Paroquiais (e é dentro dessas realidades que todas as demais realidades eclesiais co-existem). A Renovação pode e deve pensar na missão ad extra e ad gentes; o que não pode acontecer é prescindir da primeira vocação de ser corrente de graça nas comunidades paroquiais.

A Igreja é Apostólica e a autoridade do Bispo deve ser salvaguardada. O coordenador diocesano é o verdadeiro responsável pela Renovação, e todas as demais instâncias só têm razão de ser se priorizarem a assistência total e ilimitada a ele, porque ele é o único submetido diretamente a um Bispo no exercício de sua coordenação no Movimento. Quem libera ou proíbe algo ou alguém? O Bispo Diocesano e o Pároco. Quem é responsável por tudo o que acontece na vida da Igreja Particular? O Bispo Diocesano e, nas diversas comunidades, os respectivos párocos. A quem cabe o discernimento dos espíritos, em última instância? Ao Bispo Diocesano e ao Pároco. Tudo o que acontece na vida da Renovação dentro da Igreja particular recai sobre o “colo” de quem? Do Bispo Diocesano e dos Párocos! Mas, a quem eles procuram nestes casos? Ao Coordenador Diocesano!

Portanto, a Renovação Carismática Católica precisa entender-se como corrente de graça para que, por sua vez, o Movimento preste o primeiro serviço que a Igreja espera dele: Paróquias Renovadas, celebrando em vibrante liturgia.

Por que este tema é importante quando aquilo que realmente queremos abordar é a questão da Liturgia?

Bem... É o princípio metafísico de que o ser antecede o agir e que a natureza é o princípio da operação. Quando nos enxergamos como mais um Movimento da Igreja, relegamos a liturgia (bem como a economia sacramental, a catequese, etc.) ao cuidado dos padres e Bispos, pois nosso foco é fazer as coisas próprias do “nosso carisma”, do “nosso jeito de ser Igreja”. Quando nos enxergamos como corrente de graça para a vida da Igreja, a liturgia (bem como a economia sacramental, a catequese, etc.) e a vida da paróquia passam a ser de fundamental importância para as ações do Movimento. Enquanto corrente de graça, o Movimento existe especialmente para as comunidades locais. Enquanto mais um Movimento, a Renovação traça linhas de ação e planejamentos para promover apenas “um jeito de ser Igreja”, dentre tantos outros que já existem.

Nós somos propensos às polarizações. Ou é “isto” ou é “aquilo”. A Igreja, com sua sabedoria, diante destas polarizações, sempre nos oferece o “et” ao invés do “aut”. Instituição ou Carisma? Não. Instituição e Carisma! Espiritualidade ou Vida Social? Não. Espiritualidade e vida social! Movimento ou Corrente de Graça? Não. Movimento e Corrente de Graça!

Estou propondo uma mudança “revolucionária” na Renovação? Eu não acredito em golpes “revolucionários”. Não acho que se possa mudar uma cultura à força de um golpe revolucionário; as coisas precisam acontecer de modo paulatino, desde as bases. Mas, sem dúvida nenhuma... Estou sim propondo uma mudança.

Se a Renovação é apenas um Movimento Eclesial como todos os outros... A liturgia não deve ocupar lugar na sua ação pastoral. Se a Renovação é apenas uma corrente de graça... Nenhum tipo de ação pastoral se deve esperar dela e as coisas precisam se dar “por si sós”, como uma “contaminação radioativa” (o que é bem fora da realidade) Mas se a Renovação Carismática Católica é Movimento & Corrente de Graça... A liturgia, que é o Modus Orandi da Igreja, passa a ser de suma importância na ação da RCC.


Esta é a vossa definição: Corrente de Graça! (Papa Francisco)10.

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